Na semana do aniversário do ECA relatório revela retrocessos em direitos das crianças no país
A previsão acima está logo no início do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, que no próximo sábado, 13, celebra 29 anos. Verdadeiro marco na proteção legal deste grupo vulnerável, a efetivação de seus dispositivos tem se revelado um dos maiores desafios nos últimos anos.
A advogada Mayara Silva Souza, do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, explica que o ECA é um instrumento específico, por meio do qual crianças e adolescentes deixam de ser objeto de intervenção da família e do Estado, e passam a ser reconhecidos como sujeitos de direitos – “direitos estes que têm absoluta prioridade e devem ser assegurados por todos, sendo este um dever constitucional compartilhado”.
São muitas as conquistas recentes no país desde a vigência do Estatuto, como a previsão do amplo acesso ao ensino fundamental, a criação do plano nacional de educação, a redução de taxas de mortalidade materna, a implantação de testes obrigatórios para recém-nascidos, elenca a causídica.
Contudo, pondera Mayara, o ECA depende de orçamento público para sua efetividade, e por isso é impositivo seu conhecimento por parte de profissionais que atuam direta ou indiretamente com direitos de crianças e adolescentes.
“Esse é um desafio muito grande porque não se cumpre ou se respeita aquilo que não se conhece. A ausência de conhecimento em relação ao ECA é uma lacuna bastante significativa. A sociedade brasileira não é a mesma dos anos 90, mas o ECA continua sendo uma lei exemplar muito avançada. A lacuna está na sua aplicação.”
De fato, essa constatação é revelada em levantamento inédito sobre direitos das crianças no Brasil, apresentado nesta semana em SP. O relatório “Child Rights Now – Análises da Situação dos Direitos da Criança”, de cinco ONGs, revela retrocesso desde 2015, no Brasil, com relação aos direitos sociais das crianças e adolescentes. A pesquisa elenca quatro temas prioritários, considerados críticos e que estão sendo gravemente violados: acesso à educação de qualidade; convivência familiar; desigualdades, abusos e violências de gênero; e extermínio de adolescentes e jovens negros.
O cenário apresentado é alarmante: 33 milhões (61% do total) de crianças e adolescentes brasileiros vivem na pobreza ou em privação de ao menos um direito, segundo a UNICEF.
No campo da pobreza e desigualdade, o Brasil diminuiu o índice de pobreza extrema de 25,5% para 3,5% entre 1990 e 2012.
Já entre 2014 e 2017, esse número dobrou de 5,2 milhões para 11,8 milhões. O relatório aponta:
“Apesar do ECA determinar que a pobreza ou falta de meios materiais não pode ser um motivo para o afastamento e destituição do poder familiar, a maioria dos juízes e das redes que julgam cada caso, colocam a negligência baseada na falta de condições econômicas como um fator principal de tomada de decisões. Porém, dois aspectos parecem influenciar nessas decisões: a falta de compreensão técnica sobre o que é negligência e um processo de criminalização de famílias pobres.”
O documento sustenta que as crianças vindas de famílias extremamente pobres, na maioria negras e de periferia, monoparentais, são filhos e filhas de famílias chefiadas, muitas vezes, por mulheres que terminam sozinhas com a responsabilidade de cuidar dos filhos sem condições econômicas e sem que as políticas possam apoiá-las na árdua tarefa.
“Quando as políticas sociais básicas não são implementadas de maneira efetiva no município, acabam tendo um impacto muito grande no aumento das crianças nos serviços de acolhimento.”
No que tange os jovens negros, eles constituem 77% do número de adolescentes que cumprem medidas de privação e restrição de liberdade no Brasil. No geral, a soma de adolescentes presos aumentou 58,6% nos últimos seis anos, dado obtido em uma pesquisa do Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo de 2018.
Mayara lembra que o STF já decidiu que não há discricionariedade administrativa para políticas públicas que envolvem o melhor interesse da criança e do adolescente, mas ainda assim, o próprio sistema de Justiça como um todo necessita de equipes e varas especializadas. A advogada explica a situação da justiça juvenil, que “não é estabelecido de maneira objetiva e transparente”.
“Ele cria espaços para divergências nos atendimentos e deixa os adolescentes em conflito com a lei em campo desprotegido e cheio de estereótipos e preconceitos, o que cria uma falsa sensação de que adolescentes são responsáveis pela criminalidade, quando, em verdade, são as maiores vítimas da violência hoje. E esse cenário fica pior com o possível aumento de circulação de armas.”
Os especialistas são uníssonos quanto à importância do ECA, reconhecido e admirado internacionalmente como uma das mais importantes e completas do mundo sobre a proteção do indivíduo até 18 anos de idade. Porém, permanece o desafio: “Precisamos defendê-lo, compreendê-lo em sua lógica de que cuidar de crianças e adolescentes é cuidar de todos como sociedade. Precisamos compreender o dever constitucional que foi detalhado no ECA e coloca crianças e adolescentes em primeiro lugar: no orçamento, na saúde, na educação e na assistência social”, conclui Mayara Souza.
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